sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Caminhar e reflectir – esboço de alguns estilos

Permanecer o menos tempo possível sentado, só prestar atenção aos pensamentos compostos ao ar livre, no livre movimento do corpo, a nenhuma ideia cujos músculos não sejam da festa. Todo o preconceito vem das entranhas, ser sedentário é um verdadeiro pecado contra o espírito. Nietzsche mostrava o seu temperamento de viajante ao denunciar os filósofos de quarto tal como os monges encerrados nas suas celas. Caminhar é, ao mesmo tempo, uma experiência de vida e de pensar. Oferece uma disponibilidade ao que está fora, ao inesperado, ao exílio. Caminhar não é um desporto, opõe-se à perfomance, à velocidade, à rapidez – valores que a modernidade proclama. Andar a pé significa uma resistência a todas aquelas formas. Este é um esquisso sobre algumas figuras como Rosseau, Rimbaud, Nietzsche, Kant, Thoreau, etc. e que ligaram a sua experiência de vida ao caminhar enquanto acto filosófico.
A caminhada tanto pode ser solitária como acompanhada. Contudo, caminhar em grupo põe um problema de ritmo. O ritmo é essencial na caminhada, encontrar o ritmo de cada um é aquele a que nos corresponde.
Muitíssimo importante é o facto de a caminhada permitir a simpatia com o ambiente. É uma maneira de conceder algo como uma pulsação fundamental e permite uma relação de participação entre o corpo e a paisagem. O momento em que paramos para ver, em que ouvimos. Se paramos na serra e descobrimos desvios num desfiladeiro, o esforço que fazemos para aí chegar, é nesse momento em que a paisagem nos é apresentada como recompensa do esforço.
A caminhada é fundamentalmente monótona, mas não aborrecida. Há uma diferença. A exaltação deste valor de monotonia é antimoderna, representa um pólo de resistência à inovação permanente, à busca da surpresa. A caminhada é deliberadamente monótona, mas ao mesmo tempo, esta monotonia constitui um remédio do aborrecimento, porque no aborrecimento há um desespero que é o desespero de nunca poder começar qualquer coisa ao passo que na caminhada sabemos sempre o que temos a fazer que é colocar o pé depois do outro. Mesmo que isto pareça absurdo esta monotonia é tranquilizante ao passo que o aborrecimento é penoso e angustiante.
A caminhada é não só uma actividade individual ou colectiva como é uma forma cultural à qual estão ligadas grandes personalidades. Mas há também uma outra espécie de caminhantes como por exemplo o peregrino. Etimologicamente peregrinus, o estrangeiro, e que faz a experiência, ainda que mínima, do exílio. Por definição, o peregrino é aquele que está de passagem, é aquele que é estrangeiro, que não pertence à terra onde passa. Algo que é retomado pelo agostinismo e o cristianismo em geral, pois enquanto mortais estamos de passagem, num país de trânsito.

O estilo de caminhar de Nietzsche
Nietzsche fazia caminhadas nas montanhas normalmente por sendeiros ascendentes, dando a ideia de que é preciso elevar-se acima dos preconceitos, acima das grandes construções comummente recebidas. E nesta ascensão encontramos sempre a ideia da resistência, da dinâmica do pensamento, que se vê na construção dos aforismos ao sublinhar a subida esforçada a um certo ponto e aí se descobrir toda uma nova paisagem. Alguns dos aforismos de Nietzsche são construídos desta maneira, isto é, a experiência da passagem por uma garganta na montanha feita a pé leva à descoberta de coisas novas, novas perspectivas e que é o nó da escrita aforística de Nietzsche. Tinha mesmo um caderninho em que rascunhava os seus pensamentos e que retomava ao serão o que havia meditado durante a caminhada. Para Nietzsche, os caminhos tornam-se meditativos. Os caminhos não são simplesmente espaços de circulação, eles próprios são fonte de inspiração e de meditação pois a caminhada permite a não existência de imagens do mundo. Ou seja, a relação com a paisagem enquanto andamos não é mais uma relação de representação porque está ligada ao esforço do corpo, é a paisagem que insiste lentamente no corpo que caminha.
Para Nietzsche esta caminhada efectua-se contra os filósofos sedentários. É o ponto polémico da sua perspectiva. Os livros de autores prisioneiros nos seus muros, implantados nas suas cadeiras são indigestos e pesados. Nascem da compilação de outros livros sobre a mesa. São livros gordurosos, empanturrados de citações, pesados em anotações. São pesados, obesos e lêem-se com lentidão, aborrecimento, dificuldade. Fazem um livro de outro livro, comparando uma linha com outra linha, repetindo o que outros disseram, o que outros já haviam ainda contado, verifica-se, precisa-se, rectifica-se uma frase, um parágrafo, um capítulo. Um livro torna-se o comentário de cem livros, sobre a frase de um outro. Aquele que compõe caminhando, ao contrário, é livre de amarras, o seu pensamento não é escravo de outros volumes, carregado de verificações, de pensamento dos outros, sem prestar contas a ninguém, simplesmente pensar, julgar e decidir. É um pensamento que nasce de um movimento, de um élan.
Se se compuser caminhando, o exercício de verificação, de ir buscar noutros volumes, tudo isso está interdito. O pensamento é muito mais vertical a si próprio, aligeirado, e é verdade que ao caminhar só trazemos o estritamente necessário. Há uma simplificação da existência na caminhada que é também uma simplificação do pensamento. O pensamento é intimado a pensar o essencial. E já não está ocupado nem em precisões, nem em referências, porque tomado numa afirmação mais forte. Este estilo de caminhada e reflexão convoca-nos a perguntas severas: “Estou farto de escrever de uma maneira universitária e quero largar as amarras, será que sou capaz?”. A caminhada é, portanto, uma maneira de facilitar, de arranjar uma certa respiração e motorizar uma escrita que seja descongestionada de um certo peso. O gosto do ar livre, o desejo do exterior tem, assim, um sentido muitíssimo metafísico.
Quando falamos no gosto do ar livre isso corresponde à experiência da caminhada, do passeio em vários dias onde há uma inversão de uma lógica habitual na qual o ponto de estabilidade é um consigo próprio e uma interioridade/dentro e através deste dentro podemos visitar certos fora/ exterior. Ao caminhar vamos de abrigo em abrigo, de lugar em lugar, e é o conjunto paisagem / ar livre que nos serve de ponto de estabilidade. O ar livre é a exposição, a caminhada durante várias horas são uma exposição inteira do corpo aos elementos, à paisagem, à natureza. Exposição essa, que é ao mesmo tempo física e espiritual sobre o sujeito.

O estilo de caminhar de Rimbaud
Rimbaud caminha para fugir e neste sentido aproxima-se Montaigne: “quando me perguntam porque viajo não sei o que procuro, mas sei do que fujo”. Rimbaud é um exemplo de escritores que sentiram regularmente o desejo de partir. Partir por partir, é a verdadeira definição do caminhante, que não caminha num intuito preciso para ir a algum lado.
Para Rimbaud, caminhar é um movimento para se extenuar, não se trata de se reencontrar, de redescobrir uma identidade perdida, não é uma caminhada para se redescobrir a si próprio ultrapassando as máscaras sociais e as personalidades impostas. É verdadeiramente o contrário, é a caminhada como experiência da extenuação. É isto que verdadeiramente sentimos quando caminhamos muitas horas. E acontece um momento em que não somos senão um corpo que anda e finalmente conseguimos esquecermo-nos de nós próprios.

O estilo de Caminhar de Rosseau
Rosseau foi um grande caminheiro. Escreveu um célebre livro: Les rêveries d'un promeneur solitaire. Rosseau caminhava para encontrar em si próprio o primeiro homem, absolutamente primitivo, esta crença, esta ilusão de um eu primeiro. Rosseau tenta encontrar este homem que não está nos livros. Vai precisamente servir-se de longas andadas solitárias para reencontrar em si este modelo através destas caminhadas. A ideia da caminhada a pé como método para ir buscar o que não está nos livros e, paradoxalmente, para fazer um livro!... É impressionante a maneira, como várias vezes escreveu, de que era preciso desertar das bibliotecas e ir para os caminhos de modo a produzir o discurso ou para fazer o retrato deste homem primacial em harmonia com a natureza.
Nestes textos Rosseau sente simpatia com as plantas, com os animais e na caminhada há como que o despertar da dimensão do selvagem, do “wild”, das forças infra-humanas ou que não são moldadas pelo homem. Nas Confissões escreveu: “Gosto de andar como me apetece e parar quando me apraz. A vida ambulante é aquela que me convém, fazer uma caminhada durante um bocado, numa bela região sem estar com pressa...”.

O estilo de caminhar de Kant
Kant tipifica a caminhada quotidiana e à qual não queria falhar sob nenhum pretexto. Tratava-se de andadas higiénicas, em que havia sempre a mesma distância – o lado obsessivo que se presta ao riso – mas ao mesmo tempo esta disciplina, regularidade, é muito importante porque quando efectuamos uma caminhada apercebemo-nos do ponto donde vimos e depois parece-nos impossível acreditar que esta foi feita apenas com as nossas duas pernas e a ideia de um impossível que é conquistado justamente por um rigor e disciplina implacável é algo que encontramos em Kant.

O estilo de caminhar de Thoreau
Henry David Thoreau escreveu o primeiro tratado sobre caminhar chamado Walking. Nesta obra o acto de caminhar é associado à tomada de uma posição política, isto é, a uma certa recusa da civilização (tal como Rosseau). Nos seus escritos relata um passeio em que de repente encontra por acaso uma meia no meio da floresta e sente um verdadeiro horror! Hoje seria um preservativo…Segundo o autor é a civilização que vem poluir e por isso toma a decisão de viver à parte da cidade. Thoreau representa também o espírito de desobediência civil, de viver afastado. Procura demonstrar nos seus escritos que basta caminhar nas margens de um qualquer lago para bem caminhar. A ideia de caminhada participa muito mais na actividade ou conceito de caminhar do que na ideia de destino extraordinário, inédito, de descoberta exótica. Tal como Gandhi, Thoreau valorizava a economia de auto-suficiência e tem uma grande desconfiança das economias de mercado, de forças industriais em perpétua expansão. No seu livro há esta ideia de que a reserva do futuro está no selvagem, no primitivo. Para os europeus a atracção do selvagem reenvia-os sempre para a origem, ao passo que para Thoreau o selvagem aponta para o futuro. É a ideia do Oeste. O que representa o primitivo é a fonte de renovação. Thoreau, a exemplo de Nietzsche, Rosseau, Gandhi, caminhava efectivamente várias horas por dia. Era algo que estruturava profundamente a sua existência.

O estilo de caminhar dos filósofos Antigos
O que é mais evidente é que os primeiros filósofos eram caminhantes. Sócrates vai para a ágora nos dias de grande afluência de modo a poder inquietar as consciências dos cidadãos. Aristóteles era o grande peripatético por excelência, aquele que caminha na rua, no liceu. Há diferentes estilos de caminhada nos filósofos da Filosofia Antiga. A verdade é que os filósofos gregos não eram grandes caminhantes. É verdade que Sócrates se encontrava regularmente na ágora mas ele marcava passo no lugar. Tentavam levá-lo para fora da cidade – vê-se isso no Fedro - mas tal não lhe interessava. Preferia estar no lugar, preferia o burburinho da conversa no quadro da sua missão filosófica. Aristóteles é a mesma coisa. Diógenes de Laércio descreve-o como tendo longas pernas magras, e que havia esta ideia de peripateia, conversar e caminhar e que algumas aulas poderiam decorrer da seguinte maneira – um mestre pronuncia tranquilamente a sua lição enquanto os discípulos o seguiam até ao fim da fiada de colunas e voltavam. No entanto, os verdadeiros caminhantes eram os cínicos. Eles iam de cidade em cidade e reencontramos neles esta dimensão política dos caminhantes que já havíamos referenciado em outras personalidades como Thoreau ao porem em causa um certo tipo de valores da modernidade, do sistema. Esta grande exposição ao ar livre, ao fora de casa é considerada a única grande riqueza, isto é, aquele que pode dormir sobre a terra possui todas as habitações possíveis. O cínico vestido simplesmente com um tecido velho e um cajado é o verdadeiro rei sobre a terra.

O estilo de caminhar de Gandhi ou a dimensão política da marcha
Gandhi quando decide organizar a grande marcha do sal vê de imediato em quê a caminhada a pé maciça e colectiva é uma dimensão de humildade, sendo também, ao mesmo tempo, o contrário da humilhação e que é simultaneamente uma dignidade. A exaltação da marcha para Gandhi vai de par com esta busca de uma humildade que engrandece aquele que a aceita. Além disto, aquele que se afunda no ridículo é aquele que reivindica. A marcha traz consigo um valor de finitude e um certo estilo de energia que é muito mais feminina, que está do lado da resiliência, da lentidão.

Para um estilo de caminhada hodierno
O prazer, a alegria, a felicidade, a plenitude, descrevem diferentes formas de experiências. Mas a caminhada é o prazer de quê? O bem-estar é um conceito diferenciado e que, por vezes, é confundido – a felicidade, o prazer, alegria, etc. são experiências de bem-estar completamente distintos e que podemos encontrá-los na caminhada. O prazer é o encontro na sensação, e na caminhada temos a exposição aos elementos como o vento, etc. e que são prazeres físicos e temos também a figura da alegria que é o de sentir o corpo a lançar-se, da afirmação da actividade do corpo. O bem-estar da experiência da plenitude relativa. Quando paramos depois de muitas horas de caminhada é a felicidade total. É um momento de graça.
Quando caminhamos nunca estamos sós, pois estamos cercados pela presença da paisagem, das árvores, das pedras, etc. e que muito rapidamente assinalam a experiência da vibração da paisagem, essencialmente . A graça na vibração das folhas num golpe de vento é diferente quando saímos, por exemplo, de um carro com ar condicionado e tiramos uma foto. Numa caminhada, a vibração conquistada pelo esforço, é uma recompensa deste esforço, e é diferente quando saímos de uma viatura e nos confrontamos com uma paisagem onde tiramos uma foto. As cores, a modulação das linhas é um ponto de vista puramente indicado, trata-se de uma relação exterior, mas quando as conquistamos na caminhada há uma vibração que se ganha.
Correr é uma experiência muito diferente da caminhada – é evidente que o esforço não é o mesmo - mas sobretudo a diferença entre o movimento e o repouso é muito acentuada. Quando paramos após uma corrida é um momento fisiológico intenso ao passo que na caminhada o repouso é um coroamento da caminhada. A grande diferença na corrida é a de romper a gravidade ao passo que a caminhada é, primeiro, mais tranquilizante, uma renovação com a gravidade, com a finitude.

A caminhada não se reduz ao campo, à serra. Não podemos caminhar na cidade, na multidão, na rua? Porque é que não podemos caminhar na cidade? Sim, podemos caminhar na cidade, há figuras culturais aqui, como por exemplo, o flanador, exaltada por W. Benjamin, Baudelaire, é no momento em que a cidade se torna megapolis, que esta se pode constituir como paisagem, com rupturas muito semelhantes às rupturas das paisagens, com os bairros a tornarem-se diferenciados.
Walter Benjamin sublinha que a beleza (da cidade) releva mais de uma estética do choque e do esplendor e do encontro fortuito e que faz que a expressão desta beleza apreendida pelo flanador da cidade seja mais transportável para o cinema ou poema em prosa do que na poesia ritmada ou na grande prosa. Trata-se para o flanador de estar presente nos encontros que são absolutamente fugitivos e supõem uma atenção sobreaguda do espírito para os capturar. Estamos perante uma tensão intelectual e poética que é muito diferente da das grandes caminhadas na natureza (mais tranquilizante). Aqui estamos numa instalação progressiva da presença ao passo que na caminhada na cidade que é a do flanador (distinto do mirone que se deixa fascinar pelas montras) vai tentar encontrar analogias, comparações, de efemeridade e esta busca implica uma acuidade do espírito e corresponde a uma estética que é muito diferente das grandes caminhadas na montanha ou na margem de rios ou lagos.
Há um contramodelo, o flanador é o oposto do homem muito ocupado. Há um lado subversivo, de se perder, de passear, de não ser um mirone. Trata-se de subversão e não de resistência. Na ideia de subversão há sempre a ideia de recuperação de um sistema mas sem que oponhamos a esse sistema uma recusa franca e maciça. É essa a subversão do flanador, há uma utilização da cidade para fins que ela não produz funcionalmente.
Tanto podemos gostar de caminhar na cidade como gostar de caminhar na serra ou no campo – é preciso absolutamente alternar os passeios urbanos e campestres e não privilegiar um, pois o seu fundo é comum, isto é, um jogo livre de imaginação compondo as suas impressões. Mas a sua virtude é diferente, porque caminhar nas áleas públicas supõe uma passeata que permite fazer observações sobre a diversidade do género humano e do comportamento dos nossos semelhantes, de microdescobertas que são um encantamento para o espírito. Caminhar sozinho, na companhia de riachos e das árvores vai de preferência levar a uma oniricidade absolutamente afastada da rigidez da introspecção sistemática mas por isso mesmo fecunda, é como se docemente distraídos pelo espectáculo das flores e da linha de horizonte a alma se esquecesse um pouco de si e por esta via desvelasse a seus próprios olhos alguns dos seus rostos ordinariamente mascarados. O segredo do passeio é bem esta disponibilidade do espírito, tão rara na nossa existência atarefada, polarizada, cativa das nossas teimosias. A disponibilidade é uma síntese rara de abandono e de actividade fazendo todo o encanto do espírito de passear. A alma encontra-se aí disponível ao mundo das aparências, não tem que prestar contas a ninguém, e nenhum imperativo de coerência. E neste jogo sem consequências, é bem possível que o mundo se entregue mais ao passeante ao longo das suas deambulações extravagantes porque observador sério e sistemático.
Devemos conceder-nos a possibilidade de caminhar em lugares extremamente familiares, o nosso bairro, quarteirão. De modo geral, temos a cartografia mental do nosso próprio bairro que faz com que já não o vejamos. Seria talvez necessário ser um estranho ao nosso próprio bairro, quase exilar-se do seu próprio lugar, para de um só golpe o redescobrir. É possível reencontrar o interesse, o encanto, a força dos nossos passeios de infância, isto é, uma capacidade em ver o mundo numa frescura a mais pura possível e deixar-se surpreender pelas aparências. A caminhada que se confunde com o amor da manhã, isto é, o futuro se prepara no amor da aurora. Os momentos de grande emoção na caminhada são os momentos em que paramos depois de muito caminhar e que são momentos de plenitude e de repouso mas também os momentos em que partimos e buscamos um caminho ainda manhã cedo. Caminante no hay camino el camino se hace al andar.

A experiência segundo Montaigne

“A vida de César não é mais instrutiva para nós do que a nossa, e seja a vida de um imperador ou a vida de um homem do povo, trata-se sempre de uma vida em que todos os acidentes humanos lhe dizem respeito porque lhe está adstrita. Escutemos somente a nossa vida, nós dizemo-nos tudo de que temos necessidade. Quem se lembrar vezes sem conta em se enganar no seu próprio juízo não será um tolo em se pôr a desconfiar constantemente? Quando estou convencido pelo raciocínio de outrem de ter uma opinião falsa, não aprendo tanto o que ele me havia dito de novo e o ponto em particular que ignorava, o que seria pouco proveitoso, mas aprendo de maneira geral sobre a minha fraqueza e a traição à minha inteligência. Daqui tiro o melhoramento de todas as coisas”.

Os Ensaios são um corpo vivo, em que cada membro é uma amálgama aleatória à maneira de cartas mágicas não importando a ordem em que estas são dispostas e que continuam a formar uma paisagem nova. Montaigne não se lê como um romance, é preciso passearmo-nos, ir e voltar, saltaricar. Trata-se de um capítulo muito longo e que fecha Os Ensaios. É o mais belo, o mais ligeiro dos capítulos desta obra, o capítulo 13 do livro III. Terreno fértil para muitas reflexões e linhas de pensamento.
O que é a experiência para Montaigne? Para o filósofo, a experiência é, antes de tudo, a experiência de si próprio e esta não serve senão para conhecer a medida da nossa própria insuficiência. Ao lermos este texto hoje soa-nos a anticartesiano. A primeira regra em Descartes é a evidência. Ter por verdadeiro aquilo que é evidente, isto é, claro e distinto: Em Montaigne não há regras positivas, mas há uma regra que tem por função de tornar melhor a vida na sua inteireza. É o seu método, método que não conduz tanto à verdade mas a desconfiar das evidências. No fundo, o que é um tonto? Um tonto é alguém que se deixou persuadir pela evidência, que crê que uma ideia que lhe parece evidente é verdadeira. Ou seja, que está convencido de saber. É por isso que a tontaria em Montaigne não é a ignorância mas o sentimento de saber, é uma ignorância que se ignora. Se fossemos simplesmente ignorantes as coisas andariam melhor. Bastaria aprender para não se ser ignorante. Isso seria maravilhoso. Suporia logo a consciência de que somos ignorantes. A tragédia humana, e vemo-lo no colonialismo, na intolerância religiosa, despotismo politico, vem de não sermos tanto ignorantes mas tontos, isto é, cremos ter certezas e a regra de que fala Montaigne consiste em dizer que qualquer que seja a certeza que creio ter, devo sempre me lembrar que me posso enganar
Neste ponto, devemos referir a concepção do ser que subjaz a este conceito da tontaria. Se a tontaria provém do sentimento de que acedemos à verdade ou ao saber, a visão do mundo daquele que encara desta forma é uma visão que necessariamente constata que não saímos da superfície das coisas. “Não temos nenhuma comunicação ao ser”, afirma Montaigne. Não temos nenhuma participação no ser, não temos acesso senão à superfície das coisas, à tona das coisas. E Montaigne gira constantemente em volta desta ideia. “As coisas presentes mesmo, nós só as sentimos por fantasia”, isto é, por imaginação. O acesso ao ser se faz somente através de “fantasias”, de representações. A tontaria consiste em ignorar que estas representações não passam de projecções do espírito.
Montaigne fala no “homem vento”, afirma mesmo que o vento é “o meu zumbido muito mais sábio que nós”. Levar a vida conforme ao que ela é consiste em saber deixar-se levar, flutuar na tona das coisas. Por aqui se vê até que ponto Montaigne é precursor de Nietzsche, na medida em que ele é o herói da ligeireza.
Mas o vento é uma figura da arbitrariedade, do acaso e ao mesmo tempo submetido a leis da natureza, de necessidade absoluta e não estarão Os Ensaios tomados entre estes dois imperativos: a grande frivolidade e ao mesmo tempo deixar falar a necessidade? O vento, ao contrário de uma norma que é direita ou recta, desposa cada uma das coisas e as envolve. Casa completamente a forma das folhas da árvore. Se o meu espírito se faz vento este será capaz de roçar, de conhecer, de estar em comunhão com a riqueza e singularidades das coisas.
O conhecimento em Montaigne passa pela recusa do eu, de interpor entre o mundo e eu, sendo, neste sentido, um precursor de David Hume. E este propósito é ilustrado na famosa passagem onde relata (noutro capitulo) o momento da queda do cavalo. Nesta passagem, Montaigne descreve a tarefa de retomar a experiência da relação com a vida na qual ele não teria nenhuma identidade pessoal e vida seria puro relacionamento fusional, na pura corrente da vida, na abstracção de toda a representação. Esta experiência seria uma experiência da vida no seu estado puro, despojada de toda a sedimentação da identidade pessoal. É aquilo que Rosseau chamaria o puro prazer de existir. Ser capaz de se despossuir de si próprio é para Montaigne uma experiência filosófica fundamental.
Montaigne recusa-se a incriminar o mundo no caso de falhar, do revés. À maneira dos estóicos, prefere mudar o seu desejo que alterar a ordem do mundo, constata a neutralidade. O escritor é o exemplo de alguém que é muito exigente em relação a si próprio, que não apresenta qualquer desculpa, para ele, somos os responsáveis de todos os sucessos como de todos os falhanços.
Uma outra linha de pensamento que aborda é o casamento entre o prazer e a necessidade. Segundo o plumitivo, o espírito acorda e vivifica o peso do corpo e é o corpo que pára a ligeireza do espírito e o fixa. Montaigne tem a preocupação de distinguir, em matéria educativa, o espírito do corpo – o espírito faz acordar, despertar e o corpo faz pesar as coisas. O corpo tem somente uma forma e uma dobra ao passo que a alma tem disso uma infinidade. Montaigne derruba assim o cliché moral tradicional que consiste em afirmar que a alma deve regular o corpo pois supostamente ele é a causa do caos, da desregulação, do poder sexual. Montaigne afirma que o modelo é o corpo porque o espírito tende, visto que é indefinido, indeterminado, por natureza à desregulação, o espírito lança-se, vai além dos seus efeitos, está constantemente em excesso, mete os pés pelas mãos. É o espírito que se perde, nunca o corpo e a disciplina do corpo consiste em permitir ao corpo o pleno desenvolvimento da sua plasticidade. O corpo é a instância da medida ao passo que o espírito é a instância da desmedida e é por isso que é preciso juntar os dois. Por exemplo, quando dizemos que a terra é plana é o corpo ou é o espírito que nos engana? O erro não está na percepção “eu vejo o que vejo”, o erro acontece quando esta percepção desemboca num juízo que não lhe corresponde ao que é. O corpo é um organismo susceptível de ser afectado pelo prazer e dor, possui a ciência. A morte é um mal, a pobreza é um mal e a dor é um mal. Sobre isto Montaigne afirma que a morte não é um mal, que a pobreza não é um mal e a dor, o que é? A dor é a ciência certa. O corpo é. Montaigne fazia do seu corpo a matéria do conhecimento. O corpo é a ocasião de desenvolver a acuidade da consciência no relacionamento com o mundo. Por exemplo, diz que a saúde é o mais rico presente que a natureza nos concedeu, é o soberano bem: Não se trata somente “do silêncio dos órgãos” mas sim de uma saúde fervilhante e alegre. E se o tivermos que o cauterizar, isso deve ser feito sem anestesia pois Montaigne quer sentir. E isto é para fazer a experiência - não se trata de dolorismo - extrema do que é viver.
O corpo é o instrumento fundamental do acesso ao conhecimento, não teríamos a mesma visão do mundo se tivéssemos um corpo associado. A visão do mundo de golfinho seria delfínica, a visão do mundo de uma águia seria aquilina, de um elefante elefantina, etc. Portanto, Montaigne é, no fundo, um relativista. As formas em si do nosso conhecimento dependem completamente do nosso corpo. É neste sentido que as coisas em si mesmo só as conhecemos por fantasia, isto é, através dos sentidos. É por isto que não há nenhuma objectividade no conhecimento que é sempre tomada no jogo dos nossos afectos.
Saber gozar, tirar prazer lealmente do seu ser é um convite a conceber a filosofia como um exercício de mistura. A mistura é um conceito fundamental em Montaigne.”Um honesto homem é um homem misturado”. Esta mistura não é somente a mistura da alma e do corpo é também a mistura dos espíritos. Pensamos aqui na sua pesquisa sobre a amizade. Mas Montaigne refere-se à mistura de todos os espíritos da humanidade, porque não há natureza humana para Montaigne, fala sempre em condição humana. Afirma “nenhum prazer tem gosto para mim se este não for partilhado”. Quando sabemos que, no fundo, o que importa na vida é o prazer, vemos que a partilha, a comunicação, aquilo a que chama lealdade, é verdadeiramente constitutivo do que vale - é isto que confere valor à vida - a partilha a mais alargada possível da vida.

Quanto mais nos desmisturamos mais longe estamos do verdadeiro objecto. A tontaria é o fechamento da vida sob uma única forma. A estupidez do filósofo, a estupidez do médico, do pedante, de Colombo. A tontaria não é somente dogmatismo, é também tirania, produz exclusão.
A experiência de si condu-lo ao preceito Délfico e a Sócrates. “Sigam Sócrates”, dizia, o mestre dos mestres, e que Montaigne se considerava desta escola. É o seu herói. “Conhece-te a ti próprio” para Montaigne quer dizer “sabe qual é o teu lugar”. A grandeza da alma não é ir em direcção ao alto, na perfomance prometaica, mas mais se inscrever no mundo, de encontrar o seu posto. Ora isto é paradoxal em Montaigne, porque não há cosmologia, não há natureza. O chamamos natureza é aquilo que temos hábito de ver. Tudo o que está para além do nosso hábito, chamamos monstruoso e aos olhos dos mais sábios tudo é monstruoso. Ser sábio é ter conseguido sair do olhar imposto pelo costume. Portanto, conhecer o seu lugar, conhecer-se no sentido de conhecer o seu lugar, numa filosofia que não cessa de desconstruir o conceito de natureza. Ora isto é paradoxal. “Eu estudo-me mais do que outro que assunto, é a minha física, a minha metafísica”, poderíamos crer que em se tratando de um filósofo que destruiu cepticamente toda a cosmologia, ou conceito dogmático de natureza, poderíamos pensar que Montaigne iria voltar o seu olhar para o interior. Não se trata de narcisismo, pois o olhar sobre si próprio vai-lhe ensinar que ele próprio é um monstro. “Quanto mais me visito, quanto mais me frequento tanto mais me dou conta que sou um monstro, não vi no mundo monstro mais declarado do que eu próprio”. Dá-se conta que é totalmente informe, que produz pensamentos informes, as suas cogitações são de não importa o quê, desalinhadas à toa, que os seus pensamentos são um cavalo sem freio. Portanto, Montaigne descobre que no fundo, não há interioridade (nisto é semelhante a David Hume). Montaigne é alguém que concede um novo sentido ao “conhece-te a ti próprio”, porque precisamente não se pode sentar sob o pedestal de uma cosmologia, de uma natureza exterior objectiva e estável, tudo está em movimento, é o impulso perene, tudo é fluxo permanente. O fluxo, a inconstância, a variação, a monstruosidade, define também esta interioridade. Estamos longe do narcisismo.
Ponto muito importante nos Ensaios. Não atribuía importância à identidade, mas é o mesmo homem que afirmava (paradoxalmente) que é preciso coincidir consigo próprio, estar pleno no seu movimento, “quando danço, danço, quando durmo, durmo”- Não se trata de estar em permanente coincidência consigo próprio, com a sua identidade igual durante toda a vida. Trata-se sim de não perder tempo, de querer estar consciente de cada minuto para vivê-lo duplamente e é isso que é “viver lealmente”. Não é construir a minha estátua interior, é gozar/ aproveitar lealmente do seu ser. A nossa gloriosa obra-prima não é viver a sua vida, é viver adequadamente com a consciência aguda do instante e ser-lhe fiel. Estar totalmente empenhado, com a consciência do momento que estamos a viver. É isto que é “vivre à propos”.
consultar in www.bribes.org/trimegiste/montable.htm

A arte da viagem em Stendhal

20 de Outubro de 1816- Se eu não partir daqui dentro de três dias, não farei a minha viagem a Itália, não por estar retido por alguma aventura galante, mas tenho quatro ou cinco camarotes onde sou recebido como se me conhecessem à dez anos. Já não se sentem importunados por mim, e a conversa continua como se um criado tivesse acabado de entrar – maneira bizarra de se alegrar, exclamaria um dos amigos de Paris, não vejo aí senão grosseria – no momento adequado, mas é para mim a mais doce recompensa dos dois anos que passei há tempos a aprender o italiano da Toscana, e ainda o milanês, o piemontês, o napolitano, o veneziano. Ignora-se, fora de Itália inclusive, o nome destes dialectos que se fala somente nas regiões que ostentam o topónimo. Se não compreendermos as finuras do milanês, os sentimentos, as ideias dos homens nos locais por onde viajamos, permanecemos completamente invisíveis. O entusiasmo em falar e que pretensamente têm os jovens de uma certa nação, fá-los sentirem-se horrorizados em Milão. Por acaso, gosto mais de escutar do que falar. É uma vantagem e que compensa, às vezes, o meu desprezo pouco dissimulado pelos tolos. Devo confessar, ainda, que uma mulher de espírito me escrevia em Paris que eu tinha um ar rústico. É talvez devido a este defeito que a bonomia italiana me conquistou de imediato. Que naturalidade! Que simplicidade! Como cada qual diz bem o que sente ou o que pensa no momento preciso! Como se vê bem que ninguém pensa em imitar um modelo! Um inglês dizia-me em Londres, falando-me da sua amante com enleio: “ela nada tem de vulgar!”. Precisaria mais de oito dias para fazer compreender esta exclamação a um milanês. Mas, uma vez compreendida, ele rir-se-ia disso de bom grado. Seria necessário começar por explicar ao milanês que a Inglaterra é um país onde as pessoas são arrumadas e classificadas por castas, como na Índia, etc. etc.”
“Rome, Naples et Florence” é a primeira obra a levar o pseudónimo de Stendhal (Henri Beyle, seu verdadeiro nome) e é a Itália que faz lançar o seu pseudónimo que inventou – oficial, barão alemão e não um francês que escreve em princípio. É nesta obra que o escritor dá asas à sua arte de viajar e que nos coloca uma série de questões fascinantes. Há duas versões. A de 1817 e 1826. A primeira mais dedicada às sensações, a segunda mais à recordação.
Stendhal era italiano ou francês? Na verdade, era ambos. Um não podia escolher o outro desejava-o. Há uma parte de si que se identifica com a Itália. É a sensibilidade “tenho o coração italiano”, mas para poder ter a consciência e identificar essa sensibilidade, para poder levar a cabo o trabalho de reflexão sobre a sensibilidade italiana é preciso ser francês.
Stendhal em Itália é francês e italiano. É italiano porque ama a Itália, é uma paixão, é irracional, é incompreensível. Ama a Itália, ama os italianos. Mas para compreender por que os ama é necessário que seja francês. È isso que lhe dá distância. Não há um italiano que escreva sobre a França do mesmo modo como Stendhal escreve sobre a Itália. É o francês analista, intelectual que pensa e sente a Itália. É este misto que constitui a sua italianidade. A Itália de Stendhal é a conjugação de um lamento de ser francês e um alívio de não ser italiano. É isto que lhe confere a estranheza para a olhar à distância, ao mesmo tempo que adere completamente, em atravessá-la, tornando-a uma pátria de adopção, uma segunda natureza.
Stendhal dizia: “as minhas viagens tornam-me mais eu próprio”, aquilo que encontra no outro, na diferença, é um aprofundamento, um alargamento de si próprio. Mas isto só é possível porque tem a visão prévia do francês analista. Não podemos sair da identidade francesa, talvez seja isto que representa a Itália. É para ajuntar uma parte de si próprio que a civilização francesa rejeitou/ocultou ou mutilou, que a civilização moderna recusa. E para evitar isto, é preciso fazer uma imersão através das terras transalpinas.
O que distingue, o que é particular nas narrativas de Stendhal é que diferentemente doutros escritores de viagem, como ele próprio afirma, “ os escritores de viagem sabem descrever as paredes mas são incapazes de descrever os costumes” e, em segundo lugar, Stendhal não descreve nada. Apenas se atem ao que sente, às sensações que o mundo lhe deposita. Isto deve-se ao facto de que, para si, a viagem se relacionar com o diário íntimo, fundado sob o princípio de reproduzir o que aconteceu durante o dia, reflectindo-o e o diário de viagem retoma o mesmo princípio, mas fictício, as datas são alteradas, ele reflecte num outro.
Por vezes, temos dificuldade em ler estes cadernos de bordo, estas narrativas de viagem dado o carácter fragmentado, cortado, a impressão de Stendhal em se contentar pelo adjectivo mais banal para descrever um lugar.
O germe desta escrita é que o viator Stendhal não escreve sob o ponto de vista dos factos, é sustentada pelas atitudes da sensação. Escreve mesmo que se esqueceu dos factos e só se lembra das sensações. O romance é, como Stendhal afirma, uma narrativa de emoções. E se descobrimos a realidade é pela emoção e não o contrário (a razão). Por conseguinte, para Stendhal a viagem é uma caça de sensações, a viagem consiste em apanhar sensações.
A Itália é uma estética fervente, viva. Para Stendhal todas as nações têm uma personalidade criadora. A Alemanha, a França e a Inglaterra são estaleiros culturais. E a Itália tem o extremo privilégio de ser espontaneamente estética – estético no sentido grego – ou seja, a sensibilidade. Aqui a sensibilidade é soberana, e a sensibilidade se transforma espontaneamente em possibilidade criadora e em obra. Sentir, contemplar, pensar são sinónimos contínuos, ou seja, o sensível é directamente espiritual. É por isso que a beleza é uma promessa de felicidade. O estético é a única felicidade verdadeira. E isto existe em Itália porque a Itália, milagre na Europa racionalizada e já na via da racionalidade da economia e da ciência, soube permanecer fiel à definição fundamental do homem que é ser afectivo. O que deve à Itália é a apreensão imediata das coisas, sem a mediação, sem o filtro da inteligência. É cartesiano para compreender e italiano para sentir o que é essencial na compreensão. A inteligência pode perceber a sensibilidade, ela deve mesmo analisá-la. É por isso que ele é crítico de arte. O juízo intervém a partir da emoção. O francês julga sem emoção, o italiano sente sem crítica. É esta a síntese que Stendhal realiza em si próprio. A sensação torna-se sentido, é a ideia fundamental neste sistema antropológico, ou melhor, neste sistema filosófico que põe na mesma linha o acto de viver e o acto de criar. Quanto mais somos fiéis às impressões que o mundo nos deposita mais temos acesso a uma forma de espiritualidade ou a uma descrição do objecto naquilo que este tem de mais singular, de menos convencional. E exemplo desta fidelidade às impressões é a hoje celebérrima descrição que experienciou na igreja de Santa Croce em Florença onde sente um verdadeiro êxtase, quase no sentido clínico do termo, ao contemplar certas obras de arte ao ponto de quase desmaiar. Os sintomas descritos nesta célebre passagem inspiraram a psiquiatra italiana Graziella Magherini (1989) para cunhar o termo sindroma de Stendhal, ou seja, uma desordem psicossomática súbita que algumas pessoas sentem perante certas obras de arte:
“ Aqui à direita da porta está o túmulo de Miguel Ângelo, mais adiante eis o túmulo de Alfieri, por Canova, grande figura da Itália, a seguir apercebo-me do túmulo de Maquiavel e mesmo ao lado de Miguel Ângelo repousa Galileu. Que homens! E na Toscana podíamos juntar Dante, Bocaccio e Petrarca. Que espantosa reunião! A minha emoção é tão profunda que vai até quase à piedade! A obscuridade religiosa desta igreja sem tecto, em simples armação, a sua fachada não terminada, tudo isto fala vivamente à minha alma. Um monge aproximou-se de mim e, em vez de repugnância indo quase ao horror físico, senti amizade por ele. Fra Bartolomeo de S. Marco foi também monge. Este grande pintor inventou o claro-escuro, mostrou-o a Rafael e foi o precursor de Corregio. Falei com este monge no qual encontrei a cortesia mais perfeita. Ficou muito contente em ver um francês. Pedi-lhe para abrir a capela onde estão os frescos de Volterrano. Conduziu-me até aí e deixou-me sozinho. Aqui, sentado sobre um degrau de um genuflexório, a cabeça inclinada e apoiada contra o púlpito, para poder ver o tecto, as Sibilas de Volterrano concederam-me talvez o mais vivo prazer que a pintura alguma vez me deu. Estava numa espécie de êxtase pela ideia de estar em Florença, e a proximidade dos grandes homens cujos túmulos tinha acabado de ver. Absorvido na contemplação da beleza sublime, via-a de perto, tocava-a por assim dizer. Tinha chegado a um tal ponto de emoção em que se encontram as sensações celestes dadas pelas belas-artes e os sentimentos apaixonados. Ao sair de Santa Croce, sentia uma palpitação no coração, o que se chama nervos em Berlim; a vida esgotava-se em mim, caminhava com receio de cair”.
Um seu contemporâneo (Puchkin) dizia: “em Nápoles respirar é amar”, isto é, o simples movimento natural da respiração está já carregada de poder erótico e é aqui que aparece o desejo como desejo de felicidade. Beleza, desejo e sensibilidade estão assim unidos a partir da vida do corpo e o italiano vive mais espiritualmente porque o clima, a sua história e sua cultura mantiveram nele todas as forças físicas da existência. É uma ideia fundamental.
“Direi ao viajante preguiçoso que o meu objectivo ao viajar não é descrever, mas sim a vida do viajante rompendo todos os hábitos e à força de recorrer ao grande dispensador de felicidade, é preciso impor-se um trabalho sob pena de ter saudades de Paris”. Recusa que a sua escrita seja um acto intencional, um acto para passar o tempo. Não tem outra escolha para não se aborrecer. Stendhal vive em viagem. Desloca-se, flana, sem atenção, sem itinerário, ao sabor dos encontros, dos caprichos, dos desejos. Aproxima-se de Nietzsche que teorizava a errância e a vagabundagem. Os dois estão fora do sistema racional. Sem embargo, Nietzsche e Stendhal tinham um relacionamento completamente diferente a respeito do seu país. Nietzsche detestava a Alemanha mas Stendhal adere aos grandes ideais da revolução francesa. Portanto, não há esta rejeição de si próprio. Há a vontade de enfraquecer, de romper o quadro racional do homem moderno.
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