sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

A arte da viagem em Stendhal

20 de Outubro de 1816- Se eu não partir daqui dentro de três dias, não farei a minha viagem a Itália, não por estar retido por alguma aventura galante, mas tenho quatro ou cinco camarotes onde sou recebido como se me conhecessem à dez anos. Já não se sentem importunados por mim, e a conversa continua como se um criado tivesse acabado de entrar – maneira bizarra de se alegrar, exclamaria um dos amigos de Paris, não vejo aí senão grosseria – no momento adequado, mas é para mim a mais doce recompensa dos dois anos que passei há tempos a aprender o italiano da Toscana, e ainda o milanês, o piemontês, o napolitano, o veneziano. Ignora-se, fora de Itália inclusive, o nome destes dialectos que se fala somente nas regiões que ostentam o topónimo. Se não compreendermos as finuras do milanês, os sentimentos, as ideias dos homens nos locais por onde viajamos, permanecemos completamente invisíveis. O entusiasmo em falar e que pretensamente têm os jovens de uma certa nação, fá-los sentirem-se horrorizados em Milão. Por acaso, gosto mais de escutar do que falar. É uma vantagem e que compensa, às vezes, o meu desprezo pouco dissimulado pelos tolos. Devo confessar, ainda, que uma mulher de espírito me escrevia em Paris que eu tinha um ar rústico. É talvez devido a este defeito que a bonomia italiana me conquistou de imediato. Que naturalidade! Que simplicidade! Como cada qual diz bem o que sente ou o que pensa no momento preciso! Como se vê bem que ninguém pensa em imitar um modelo! Um inglês dizia-me em Londres, falando-me da sua amante com enleio: “ela nada tem de vulgar!”. Precisaria mais de oito dias para fazer compreender esta exclamação a um milanês. Mas, uma vez compreendida, ele rir-se-ia disso de bom grado. Seria necessário começar por explicar ao milanês que a Inglaterra é um país onde as pessoas são arrumadas e classificadas por castas, como na Índia, etc. etc.”
“Rome, Naples et Florence” é a primeira obra a levar o pseudónimo de Stendhal (Henri Beyle, seu verdadeiro nome) e é a Itália que faz lançar o seu pseudónimo que inventou – oficial, barão alemão e não um francês que escreve em princípio. É nesta obra que o escritor dá asas à sua arte de viajar e que nos coloca uma série de questões fascinantes. Há duas versões. A de 1817 e 1826. A primeira mais dedicada às sensações, a segunda mais à recordação.
Stendhal era italiano ou francês? Na verdade, era ambos. Um não podia escolher o outro desejava-o. Há uma parte de si que se identifica com a Itália. É a sensibilidade “tenho o coração italiano”, mas para poder ter a consciência e identificar essa sensibilidade, para poder levar a cabo o trabalho de reflexão sobre a sensibilidade italiana é preciso ser francês.
Stendhal em Itália é francês e italiano. É italiano porque ama a Itália, é uma paixão, é irracional, é incompreensível. Ama a Itália, ama os italianos. Mas para compreender por que os ama é necessário que seja francês. È isso que lhe dá distância. Não há um italiano que escreva sobre a França do mesmo modo como Stendhal escreve sobre a Itália. É o francês analista, intelectual que pensa e sente a Itália. É este misto que constitui a sua italianidade. A Itália de Stendhal é a conjugação de um lamento de ser francês e um alívio de não ser italiano. É isto que lhe confere a estranheza para a olhar à distância, ao mesmo tempo que adere completamente, em atravessá-la, tornando-a uma pátria de adopção, uma segunda natureza.
Stendhal dizia: “as minhas viagens tornam-me mais eu próprio”, aquilo que encontra no outro, na diferença, é um aprofundamento, um alargamento de si próprio. Mas isto só é possível porque tem a visão prévia do francês analista. Não podemos sair da identidade francesa, talvez seja isto que representa a Itália. É para ajuntar uma parte de si próprio que a civilização francesa rejeitou/ocultou ou mutilou, que a civilização moderna recusa. E para evitar isto, é preciso fazer uma imersão através das terras transalpinas.
O que distingue, o que é particular nas narrativas de Stendhal é que diferentemente doutros escritores de viagem, como ele próprio afirma, “ os escritores de viagem sabem descrever as paredes mas são incapazes de descrever os costumes” e, em segundo lugar, Stendhal não descreve nada. Apenas se atem ao que sente, às sensações que o mundo lhe deposita. Isto deve-se ao facto de que, para si, a viagem se relacionar com o diário íntimo, fundado sob o princípio de reproduzir o que aconteceu durante o dia, reflectindo-o e o diário de viagem retoma o mesmo princípio, mas fictício, as datas são alteradas, ele reflecte num outro.
Por vezes, temos dificuldade em ler estes cadernos de bordo, estas narrativas de viagem dado o carácter fragmentado, cortado, a impressão de Stendhal em se contentar pelo adjectivo mais banal para descrever um lugar.
O germe desta escrita é que o viator Stendhal não escreve sob o ponto de vista dos factos, é sustentada pelas atitudes da sensação. Escreve mesmo que se esqueceu dos factos e só se lembra das sensações. O romance é, como Stendhal afirma, uma narrativa de emoções. E se descobrimos a realidade é pela emoção e não o contrário (a razão). Por conseguinte, para Stendhal a viagem é uma caça de sensações, a viagem consiste em apanhar sensações.
A Itália é uma estética fervente, viva. Para Stendhal todas as nações têm uma personalidade criadora. A Alemanha, a França e a Inglaterra são estaleiros culturais. E a Itália tem o extremo privilégio de ser espontaneamente estética – estético no sentido grego – ou seja, a sensibilidade. Aqui a sensibilidade é soberana, e a sensibilidade se transforma espontaneamente em possibilidade criadora e em obra. Sentir, contemplar, pensar são sinónimos contínuos, ou seja, o sensível é directamente espiritual. É por isso que a beleza é uma promessa de felicidade. O estético é a única felicidade verdadeira. E isto existe em Itália porque a Itália, milagre na Europa racionalizada e já na via da racionalidade da economia e da ciência, soube permanecer fiel à definição fundamental do homem que é ser afectivo. O que deve à Itália é a apreensão imediata das coisas, sem a mediação, sem o filtro da inteligência. É cartesiano para compreender e italiano para sentir o que é essencial na compreensão. A inteligência pode perceber a sensibilidade, ela deve mesmo analisá-la. É por isso que ele é crítico de arte. O juízo intervém a partir da emoção. O francês julga sem emoção, o italiano sente sem crítica. É esta a síntese que Stendhal realiza em si próprio. A sensação torna-se sentido, é a ideia fundamental neste sistema antropológico, ou melhor, neste sistema filosófico que põe na mesma linha o acto de viver e o acto de criar. Quanto mais somos fiéis às impressões que o mundo nos deposita mais temos acesso a uma forma de espiritualidade ou a uma descrição do objecto naquilo que este tem de mais singular, de menos convencional. E exemplo desta fidelidade às impressões é a hoje celebérrima descrição que experienciou na igreja de Santa Croce em Florença onde sente um verdadeiro êxtase, quase no sentido clínico do termo, ao contemplar certas obras de arte ao ponto de quase desmaiar. Os sintomas descritos nesta célebre passagem inspiraram a psiquiatra italiana Graziella Magherini (1989) para cunhar o termo sindroma de Stendhal, ou seja, uma desordem psicossomática súbita que algumas pessoas sentem perante certas obras de arte:
“ Aqui à direita da porta está o túmulo de Miguel Ângelo, mais adiante eis o túmulo de Alfieri, por Canova, grande figura da Itália, a seguir apercebo-me do túmulo de Maquiavel e mesmo ao lado de Miguel Ângelo repousa Galileu. Que homens! E na Toscana podíamos juntar Dante, Bocaccio e Petrarca. Que espantosa reunião! A minha emoção é tão profunda que vai até quase à piedade! A obscuridade religiosa desta igreja sem tecto, em simples armação, a sua fachada não terminada, tudo isto fala vivamente à minha alma. Um monge aproximou-se de mim e, em vez de repugnância indo quase ao horror físico, senti amizade por ele. Fra Bartolomeo de S. Marco foi também monge. Este grande pintor inventou o claro-escuro, mostrou-o a Rafael e foi o precursor de Corregio. Falei com este monge no qual encontrei a cortesia mais perfeita. Ficou muito contente em ver um francês. Pedi-lhe para abrir a capela onde estão os frescos de Volterrano. Conduziu-me até aí e deixou-me sozinho. Aqui, sentado sobre um degrau de um genuflexório, a cabeça inclinada e apoiada contra o púlpito, para poder ver o tecto, as Sibilas de Volterrano concederam-me talvez o mais vivo prazer que a pintura alguma vez me deu. Estava numa espécie de êxtase pela ideia de estar em Florença, e a proximidade dos grandes homens cujos túmulos tinha acabado de ver. Absorvido na contemplação da beleza sublime, via-a de perto, tocava-a por assim dizer. Tinha chegado a um tal ponto de emoção em que se encontram as sensações celestes dadas pelas belas-artes e os sentimentos apaixonados. Ao sair de Santa Croce, sentia uma palpitação no coração, o que se chama nervos em Berlim; a vida esgotava-se em mim, caminhava com receio de cair”.
Um seu contemporâneo (Puchkin) dizia: “em Nápoles respirar é amar”, isto é, o simples movimento natural da respiração está já carregada de poder erótico e é aqui que aparece o desejo como desejo de felicidade. Beleza, desejo e sensibilidade estão assim unidos a partir da vida do corpo e o italiano vive mais espiritualmente porque o clima, a sua história e sua cultura mantiveram nele todas as forças físicas da existência. É uma ideia fundamental.
“Direi ao viajante preguiçoso que o meu objectivo ao viajar não é descrever, mas sim a vida do viajante rompendo todos os hábitos e à força de recorrer ao grande dispensador de felicidade, é preciso impor-se um trabalho sob pena de ter saudades de Paris”. Recusa que a sua escrita seja um acto intencional, um acto para passar o tempo. Não tem outra escolha para não se aborrecer. Stendhal vive em viagem. Desloca-se, flana, sem atenção, sem itinerário, ao sabor dos encontros, dos caprichos, dos desejos. Aproxima-se de Nietzsche que teorizava a errância e a vagabundagem. Os dois estão fora do sistema racional. Sem embargo, Nietzsche e Stendhal tinham um relacionamento completamente diferente a respeito do seu país. Nietzsche detestava a Alemanha mas Stendhal adere aos grandes ideais da revolução francesa. Portanto, não há esta rejeição de si próprio. Há a vontade de enfraquecer, de romper o quadro racional do homem moderno.
Rome, Naples et Florence in google livros

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