sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

A experiência segundo Montaigne

“A vida de César não é mais instrutiva para nós do que a nossa, e seja a vida de um imperador ou a vida de um homem do povo, trata-se sempre de uma vida em que todos os acidentes humanos lhe dizem respeito porque lhe está adstrita. Escutemos somente a nossa vida, nós dizemo-nos tudo de que temos necessidade. Quem se lembrar vezes sem conta em se enganar no seu próprio juízo não será um tolo em se pôr a desconfiar constantemente? Quando estou convencido pelo raciocínio de outrem de ter uma opinião falsa, não aprendo tanto o que ele me havia dito de novo e o ponto em particular que ignorava, o que seria pouco proveitoso, mas aprendo de maneira geral sobre a minha fraqueza e a traição à minha inteligência. Daqui tiro o melhoramento de todas as coisas”.

Os Ensaios são um corpo vivo, em que cada membro é uma amálgama aleatória à maneira de cartas mágicas não importando a ordem em que estas são dispostas e que continuam a formar uma paisagem nova. Montaigne não se lê como um romance, é preciso passearmo-nos, ir e voltar, saltaricar. Trata-se de um capítulo muito longo e que fecha Os Ensaios. É o mais belo, o mais ligeiro dos capítulos desta obra, o capítulo 13 do livro III. Terreno fértil para muitas reflexões e linhas de pensamento.
O que é a experiência para Montaigne? Para o filósofo, a experiência é, antes de tudo, a experiência de si próprio e esta não serve senão para conhecer a medida da nossa própria insuficiência. Ao lermos este texto hoje soa-nos a anticartesiano. A primeira regra em Descartes é a evidência. Ter por verdadeiro aquilo que é evidente, isto é, claro e distinto: Em Montaigne não há regras positivas, mas há uma regra que tem por função de tornar melhor a vida na sua inteireza. É o seu método, método que não conduz tanto à verdade mas a desconfiar das evidências. No fundo, o que é um tonto? Um tonto é alguém que se deixou persuadir pela evidência, que crê que uma ideia que lhe parece evidente é verdadeira. Ou seja, que está convencido de saber. É por isso que a tontaria em Montaigne não é a ignorância mas o sentimento de saber, é uma ignorância que se ignora. Se fossemos simplesmente ignorantes as coisas andariam melhor. Bastaria aprender para não se ser ignorante. Isso seria maravilhoso. Suporia logo a consciência de que somos ignorantes. A tragédia humana, e vemo-lo no colonialismo, na intolerância religiosa, despotismo politico, vem de não sermos tanto ignorantes mas tontos, isto é, cremos ter certezas e a regra de que fala Montaigne consiste em dizer que qualquer que seja a certeza que creio ter, devo sempre me lembrar que me posso enganar
Neste ponto, devemos referir a concepção do ser que subjaz a este conceito da tontaria. Se a tontaria provém do sentimento de que acedemos à verdade ou ao saber, a visão do mundo daquele que encara desta forma é uma visão que necessariamente constata que não saímos da superfície das coisas. “Não temos nenhuma comunicação ao ser”, afirma Montaigne. Não temos nenhuma participação no ser, não temos acesso senão à superfície das coisas, à tona das coisas. E Montaigne gira constantemente em volta desta ideia. “As coisas presentes mesmo, nós só as sentimos por fantasia”, isto é, por imaginação. O acesso ao ser se faz somente através de “fantasias”, de representações. A tontaria consiste em ignorar que estas representações não passam de projecções do espírito.
Montaigne fala no “homem vento”, afirma mesmo que o vento é “o meu zumbido muito mais sábio que nós”. Levar a vida conforme ao que ela é consiste em saber deixar-se levar, flutuar na tona das coisas. Por aqui se vê até que ponto Montaigne é precursor de Nietzsche, na medida em que ele é o herói da ligeireza.
Mas o vento é uma figura da arbitrariedade, do acaso e ao mesmo tempo submetido a leis da natureza, de necessidade absoluta e não estarão Os Ensaios tomados entre estes dois imperativos: a grande frivolidade e ao mesmo tempo deixar falar a necessidade? O vento, ao contrário de uma norma que é direita ou recta, desposa cada uma das coisas e as envolve. Casa completamente a forma das folhas da árvore. Se o meu espírito se faz vento este será capaz de roçar, de conhecer, de estar em comunhão com a riqueza e singularidades das coisas.
O conhecimento em Montaigne passa pela recusa do eu, de interpor entre o mundo e eu, sendo, neste sentido, um precursor de David Hume. E este propósito é ilustrado na famosa passagem onde relata (noutro capitulo) o momento da queda do cavalo. Nesta passagem, Montaigne descreve a tarefa de retomar a experiência da relação com a vida na qual ele não teria nenhuma identidade pessoal e vida seria puro relacionamento fusional, na pura corrente da vida, na abstracção de toda a representação. Esta experiência seria uma experiência da vida no seu estado puro, despojada de toda a sedimentação da identidade pessoal. É aquilo que Rosseau chamaria o puro prazer de existir. Ser capaz de se despossuir de si próprio é para Montaigne uma experiência filosófica fundamental.
Montaigne recusa-se a incriminar o mundo no caso de falhar, do revés. À maneira dos estóicos, prefere mudar o seu desejo que alterar a ordem do mundo, constata a neutralidade. O escritor é o exemplo de alguém que é muito exigente em relação a si próprio, que não apresenta qualquer desculpa, para ele, somos os responsáveis de todos os sucessos como de todos os falhanços.
Uma outra linha de pensamento que aborda é o casamento entre o prazer e a necessidade. Segundo o plumitivo, o espírito acorda e vivifica o peso do corpo e é o corpo que pára a ligeireza do espírito e o fixa. Montaigne tem a preocupação de distinguir, em matéria educativa, o espírito do corpo – o espírito faz acordar, despertar e o corpo faz pesar as coisas. O corpo tem somente uma forma e uma dobra ao passo que a alma tem disso uma infinidade. Montaigne derruba assim o cliché moral tradicional que consiste em afirmar que a alma deve regular o corpo pois supostamente ele é a causa do caos, da desregulação, do poder sexual. Montaigne afirma que o modelo é o corpo porque o espírito tende, visto que é indefinido, indeterminado, por natureza à desregulação, o espírito lança-se, vai além dos seus efeitos, está constantemente em excesso, mete os pés pelas mãos. É o espírito que se perde, nunca o corpo e a disciplina do corpo consiste em permitir ao corpo o pleno desenvolvimento da sua plasticidade. O corpo é a instância da medida ao passo que o espírito é a instância da desmedida e é por isso que é preciso juntar os dois. Por exemplo, quando dizemos que a terra é plana é o corpo ou é o espírito que nos engana? O erro não está na percepção “eu vejo o que vejo”, o erro acontece quando esta percepção desemboca num juízo que não lhe corresponde ao que é. O corpo é um organismo susceptível de ser afectado pelo prazer e dor, possui a ciência. A morte é um mal, a pobreza é um mal e a dor é um mal. Sobre isto Montaigne afirma que a morte não é um mal, que a pobreza não é um mal e a dor, o que é? A dor é a ciência certa. O corpo é. Montaigne fazia do seu corpo a matéria do conhecimento. O corpo é a ocasião de desenvolver a acuidade da consciência no relacionamento com o mundo. Por exemplo, diz que a saúde é o mais rico presente que a natureza nos concedeu, é o soberano bem: Não se trata somente “do silêncio dos órgãos” mas sim de uma saúde fervilhante e alegre. E se o tivermos que o cauterizar, isso deve ser feito sem anestesia pois Montaigne quer sentir. E isto é para fazer a experiência - não se trata de dolorismo - extrema do que é viver.
O corpo é o instrumento fundamental do acesso ao conhecimento, não teríamos a mesma visão do mundo se tivéssemos um corpo associado. A visão do mundo de golfinho seria delfínica, a visão do mundo de uma águia seria aquilina, de um elefante elefantina, etc. Portanto, Montaigne é, no fundo, um relativista. As formas em si do nosso conhecimento dependem completamente do nosso corpo. É neste sentido que as coisas em si mesmo só as conhecemos por fantasia, isto é, através dos sentidos. É por isto que não há nenhuma objectividade no conhecimento que é sempre tomada no jogo dos nossos afectos.
Saber gozar, tirar prazer lealmente do seu ser é um convite a conceber a filosofia como um exercício de mistura. A mistura é um conceito fundamental em Montaigne.”Um honesto homem é um homem misturado”. Esta mistura não é somente a mistura da alma e do corpo é também a mistura dos espíritos. Pensamos aqui na sua pesquisa sobre a amizade. Mas Montaigne refere-se à mistura de todos os espíritos da humanidade, porque não há natureza humana para Montaigne, fala sempre em condição humana. Afirma “nenhum prazer tem gosto para mim se este não for partilhado”. Quando sabemos que, no fundo, o que importa na vida é o prazer, vemos que a partilha, a comunicação, aquilo a que chama lealdade, é verdadeiramente constitutivo do que vale - é isto que confere valor à vida - a partilha a mais alargada possível da vida.

Quanto mais nos desmisturamos mais longe estamos do verdadeiro objecto. A tontaria é o fechamento da vida sob uma única forma. A estupidez do filósofo, a estupidez do médico, do pedante, de Colombo. A tontaria não é somente dogmatismo, é também tirania, produz exclusão.
A experiência de si condu-lo ao preceito Délfico e a Sócrates. “Sigam Sócrates”, dizia, o mestre dos mestres, e que Montaigne se considerava desta escola. É o seu herói. “Conhece-te a ti próprio” para Montaigne quer dizer “sabe qual é o teu lugar”. A grandeza da alma não é ir em direcção ao alto, na perfomance prometaica, mas mais se inscrever no mundo, de encontrar o seu posto. Ora isto é paradoxal em Montaigne, porque não há cosmologia, não há natureza. O chamamos natureza é aquilo que temos hábito de ver. Tudo o que está para além do nosso hábito, chamamos monstruoso e aos olhos dos mais sábios tudo é monstruoso. Ser sábio é ter conseguido sair do olhar imposto pelo costume. Portanto, conhecer o seu lugar, conhecer-se no sentido de conhecer o seu lugar, numa filosofia que não cessa de desconstruir o conceito de natureza. Ora isto é paradoxal. “Eu estudo-me mais do que outro que assunto, é a minha física, a minha metafísica”, poderíamos crer que em se tratando de um filósofo que destruiu cepticamente toda a cosmologia, ou conceito dogmático de natureza, poderíamos pensar que Montaigne iria voltar o seu olhar para o interior. Não se trata de narcisismo, pois o olhar sobre si próprio vai-lhe ensinar que ele próprio é um monstro. “Quanto mais me visito, quanto mais me frequento tanto mais me dou conta que sou um monstro, não vi no mundo monstro mais declarado do que eu próprio”. Dá-se conta que é totalmente informe, que produz pensamentos informes, as suas cogitações são de não importa o quê, desalinhadas à toa, que os seus pensamentos são um cavalo sem freio. Portanto, Montaigne descobre que no fundo, não há interioridade (nisto é semelhante a David Hume). Montaigne é alguém que concede um novo sentido ao “conhece-te a ti próprio”, porque precisamente não se pode sentar sob o pedestal de uma cosmologia, de uma natureza exterior objectiva e estável, tudo está em movimento, é o impulso perene, tudo é fluxo permanente. O fluxo, a inconstância, a variação, a monstruosidade, define também esta interioridade. Estamos longe do narcisismo.
Ponto muito importante nos Ensaios. Não atribuía importância à identidade, mas é o mesmo homem que afirmava (paradoxalmente) que é preciso coincidir consigo próprio, estar pleno no seu movimento, “quando danço, danço, quando durmo, durmo”- Não se trata de estar em permanente coincidência consigo próprio, com a sua identidade igual durante toda a vida. Trata-se sim de não perder tempo, de querer estar consciente de cada minuto para vivê-lo duplamente e é isso que é “viver lealmente”. Não é construir a minha estátua interior, é gozar/ aproveitar lealmente do seu ser. A nossa gloriosa obra-prima não é viver a sua vida, é viver adequadamente com a consciência aguda do instante e ser-lhe fiel. Estar totalmente empenhado, com a consciência do momento que estamos a viver. É isto que é “vivre à propos”.
consultar in www.bribes.org/trimegiste/montable.htm

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